Padre Ceslao Pera, o.p.
No velho registro do convento de São Domingos em Turim se lêem estas palavras no epitáfio de monsenhor Tommaso Giacomelli, dominicano pineroles, falecido bispo de Toulon em 1569:
« Sed felix patriae, mutatio, patria namque
cui pes montis erat, mons Deus est pátria.»
Essa visão do Piemonte místico me veio após ter lido a crônica da semana da paixão de Pier Giorgio Frassati onde, através do relato dos fatos, se escuta o esvoaçar o espírito que ultrapassa transfigurado a fronteira terrena e perdura radioso na memória da historia:
« É feliz transformação de pátria, porque
para quem pátria era o Piemonte, o monte Deus é pátria. »
Considere-se aquele repetido gesto de Pier Giorgio que pega a Vida de Santa Catarina e lê a quem o visita uma página onde está descrita, com a experiência da Paixão de Cristo, a elevação mística da santa às alturas da divina essência…
Para o espírito de Pier Giorgio, que meditou este fato carismático em suas horas de Getsemani, permaneceu um sinal indicador de seu itinerário, na linha de crescimento de cada alma cristã.
Isso é tão mais significativo quanto mais complexa é a simplicidade linear deste ingênuo da montanha e do espírito: a coerência segura dos turrões bieleses (N.T.: natural da cidade de Biela) se transfigura em fortes resistências psicológicas; o desumano cansaço dos elevados estudos universitários não encobre a fina ponta de seu espírito, forjada pela chama ardente de uma caridade operosa; as doces comodidades de uma vida civil, que na alta burguesia piemontesa lhe assegurava honras e favorecimentos, nem deprimem seu espírito com o ilusório compromisso, nem destroem seu ardor através do prazer fácil.
Outro ponto a se meditar: existe uma «estrada eminente” que o cristianismo abriu para os homens no tocante a ir para a eternidade gloriosa. Todas as outras estradas pelas quais podem os homens caminhar: arte e cultura, ciência e tecnologia, industria e comercio, se não querem se tornar um labirinto, mas um desenvolvimento ordenado de perfeição verdadeiramente digna do homem, deste fato radicalmente novo terão que receber um novo sentido de orientação que redobra, por assim dizer, o seu valor e, retificando-o, multiplica seus desenvolvimentos progressivos.
Pier Giorgio compreendeu muito bem esse significado divino da vida e com todo seu ardor juvenil entrou na «eminente estrada” da caridade, tornando-se o apóstolo que todos conhecem e o místico que, como já se falou anteriormente, é revelado pela leitura e pela meditação do êxtase cateriniano.
Nele se verifica a transfiguração à qual se refere o epitáfio de mons. Tommaso Giacomelli:
« para quem pátria era o Piemonte, o monte Deus é pátria ».
Não cabe a nós julgar qual grau de perfeição na caridade ele tenha atingido, mas não seria generoso e muito menos honesto quem pretendesse desprezar a excelência de sua vida cristã.
O julgamento da sanção final aguarda o legislador supremo que a si reservou tal incumbência.
O julgamento ético no que se refere à vida e à virtude exercitadas em grau heróico estão reservadas para a Igreja que como sociedade divina tem a competência necessária para indicar os heróis da virtude e da ação no que diz respeito à vida eterna.
O julgamento histórico pode ser dado por quem, estudados os fatos, os considera e avalia na trama da historia humana, onde também age o fermento cristão da nova vida, nascida de Jesus Cristo.
Ninguém, sob esse aspecto, pode ignorar os imensos benefícios que Jesus Cristo e a Igreja distribuiram e continuam a difundir na humanidade peregrina.
Agora a vida de Pier Giorgio preenche os primeiros vinte e cinco anos do nosso século (6 de abril de 1901 – 4 de julho de 1925) e todos sabem das lutas e ansiedades de tal período. Não se diz nada novo, afirmando-se que o processo de desmoronamento espiritual alcançou a ultima pedra do edifico cristão, correspondente ao ultimo parágrafo do Credo: « Eu creio… a vida eterna ».
Na confluência dos múltiplos endereços teóricos e práticos, que com mais ou menos enfase tendem a encontrar um sentido para a vida descoroada de seu valor supremo, privada de seu sentido divino, dessacralizada em seu conteúdo real, Pier Giorgio representa o homem do século vinte que aponta a solução certa: a caridade que nos faz amigos de Deus é a perfeição da vida humana. Através dela, a vida reencontra seu valor supremo, seu sentido divino, sua consagração.
Prevalecendo o sentido econômico da vida, sob o constante impulso das necessidades primordiais, teorizadas de forma a restringir sempre mais os horizontes do espírito e eliminar as paisagens abertas da eterna luz, Pier Giorgio se mostra como aquele que pensa e opera na liberdade e na soberania do espírito.
Por um lado, golpeando o jugo da riqueza, liberta-se da aparência falsa do compromisso burguês e imprime à sua vida um impulso generoso livre de qualquer egoísmo.
Por outro, servindo-se da riqueza não para satisfação de seus caprichos ou de suas exigências primordiais, mas para fazer o bem sempre, em qualquer lugar, a todos os necessitados, ele proclama em voz alta que a verdadeira felicidade está em outro lugar e que a verdadeira ascensão da comunidade, se não se quiser que seja um blefe, mas sim uma realidade operante, tem seu empurrão inicial não de baixo onde se agitam os instintos mas do alto onde brilha a luz.
Ele não traduziu em teoria a narração da pobreza e riqueza, mas apresentou uma norma na qual cada um pode ler o grande ensinamento que enquanto libera o espírito da escravidão da matéria e da prepotência, assegura às forças do espírito o triunfo sobre a ambição dos grandes e sobre a sedução do ouro.
Porque integralmente cristão, Pier Giorgio não teve medo das palavras de Jesus (Mt 19,24): «…é mais fácil que um camelo passe pelo buraco de uma agulha que um rico entre no reino de Deus». Por isso viveu alegremente, fazendo o bem e praticando perfeitamente o ensinamento sagrado….
A quem nos acusa de desprezar as coisas da terra em detrimento ao Paraíso ou de anestesiar as pessoas com o narcótico da vida eterna, Pier Giorgio responde com a sua vida que elimina por si só cada amor desordenado pela riqueza e afirma com ênfase o bom uso da criação. Nisso se sente a influencia e se descobre a marca da sublime ascese inaciana que sobre esse principio fundamenta cada posterior perfeição ética, enquanto a chama de seu coração retira alimento vital do calor familiar de são João Bosco.
Através dessa atividade de forças convergentes à atuação da perfeição humana sob a luz de Jesus Cristo, Pier Giorgio mesmo sendo moderno, acaba por sentir-se à vontade com os medievais e, na vida moderna, traduz com eficácia a síntese harmoniosamente fecunda deles, onde desaparecem as distancias e as divergências e, no reflexo da luz eterna, o espírito cumpre seu itinerário místico.
Introdução ao volume de Luciana Frassati, Pier Giorgio Frassati. Recordações, testemunhos e estudos, «Mihi testes», Edições Studio Dominicano, Bolonha, 1985.