Um forte

Giovanni Battista Montini, depois Paulo VI

Falar dele me é impossível. A mim não foi dado conhecê-lo pessoalmente e muitos daqueles que agora quisessem reinvocada sua figura, poderiam, muito melhor que eu, chamá-lo à nossa memória, relembrando os testemunhos da mesma. Além disso, após a louvável coleta de lembranças e testemunhos que foi feita sobre a vida de Pier Giorgio e que circula pelas mãos de todos, difícil seria para alguém acrescentar novos documentos, ou também dar-lhes interpretação diferente.
Não dele, portanto, mas de nós nos compete falar, quando o vamos comemorando na piedade da memória cristã; de nós, para quem a lembrança do jovem espontaneamente, afetuosamente reúne em torno ao altar que acolheu um dia as suas orações, e com uma alegria forte e profunda conforta e eleva.

De nossa parte, ante Pier Giorgio sete anos após sua morte, algo especialmente parece que deva ser dito. E é justamente este intimo e estimulante consolo que parece ser o sentimento mais pertinente para se lembrar dessa morte e para ter luz sobre nossa vida; é justamente, digo, esse consolo que nós agora devemos interpretar.
Por que a figura de Pier Giorgio nos é de grande conforto?

Se cada um de nós aprofunda em si mesmo esta pergunta, entrevê logo a resposta. A figura de Pier Giorgio nos é escudo contra uma das mais fortes e sutis tentações que afligem a vida espiritual; a vida cristã, a vida cristã autentica, completa, ávida de perfeição, representa agora uma concepção restrita e superada da existência humana, um ideal apagado, um mundo pequeno e fechado, um arcaísmo que só quem vive às margens do grande rio da atividade moderna pode fazer seu.

Os jovens compreendem o que digo, porque a tentação é, de fato, dirigida contra eles. Cada um deles que tenha mesmo que apenas roçado as correntes inspiradoras do moderno pensar, sente que deva fazer um esforço para permanecer interiormente fiel e convencido. Porque em cada um de nós dormem reminiscências de escola e de vida que com a potencia das fórmulas claras e esculpidas no engano de belas palavras, repugnam a Cristo.

O Chrit ! Je ne suis pas de ceux que la prière
Dans tes temples muets amène à pas tremblants…
Je ne crois pas, o Christ, à ta parole sainte,
Je suis venu trop tard dans um monde trop vieux.
D’un siècle sans espoir naît um siècle sans craint.
…Ta gloire est mort, o Christ; et sur nos croix d’ébene
Ton cadavre céleste en poussiere est tombe !

E essa tremenda sentença não saiu somente do soluço do infeliz De Musset; saiu calma e solene dos lábios de professores que nos pareciam, na escola, mais perceptivos e imparciais; e que dosando em benignas concessões a negação anticristã, admitiam o cristianismo ter sido um passo, uma etapa no progresso da história e da civilização, mas um passo e uma etapa que o século moderno não pode mais percorrer, sob pena de aprisionamento e retrocesso das conquistas da ciência e da consciência humana.

E a Igreja, a imensa sociedade de fiéis, foi prospectada sob a luz infiel de tais ideologias, como um organismo puramente exterior, sustentado por um fascínio de pueril e tradicional superstição, recoberto de ritos estranhos e antiquados, sobrecarregado de símbolos e de objetos até agora confinados na penumbra mofada das sacristias e incapaz de colocar-se de acordo com as poderosas correntes de vida contemporânea.

Ao contrario, esta vida contemporânea nos parece soberba e gigantesca, mesmo porque esquece das antigas regras com as quais a concessão cristã a bloqueava no livre curso. E da complexidade das organizações industriais e sociais, da variedade dos mil divertimentos novos e sedutores, da riqueza vital do risco e do exercício esportivo, de todas as descobertas, das inovações e dos movimentos do nosso século, quantas vezes entrou em nossa alma um fascínio misterioso e sugestivo, um entusiasmo que eleva e paralisa ao mesmo tempo, uma força exultante e excessiva, que nos levava longe do tranqüilo e reto caminho de Cristo e nos parecia colocar no fundo da alma a irredutível antítese: ou ser modernos, ou ser cristãos. As duas concessões se excluem ! Como ser, então, ainda cristãos? Eis a tentação.

Pier Giorgio responde com sua vida. É a sua, uma primeira, intuitiva resposta, que salta aos olhos de qualquer um que observe aquela vida, seja ele irmão de fé ou não.

Ele é um forte.

Seu perfil físico deixa transparecer essa característica, tão desejada pelos jovens e tão exaltada pelos modernos. A fantasia repete para ele o que se verificou com S. Luis Gonzaga, quando para representar esse santo se escolheu o famoso quadro atribuído a Veronese, onde em uma viril e gentil figura de jovem parece refletir um caráter vigoroso e atrevido. O vemos, e era assim: robusto, são, correto.

Assim o viram aqueles que o olharam de fora. Antes de perceberem que era de essência santa, viram que era de essência forte. Viram que era um homem. O testemunho do jornal socialista milanês, ao tecer sua necrologia, sintetiza assim o admirável jovem: “era verdadeiramente um homem Pier Giorgio Frassati”.

Nem o julgamento dos que o observaram de perto, nem a intimidade quotidiana, reveladora do temperamento e do caráter, soa diferente.

Cabeça dura o chamou a família.

Força física e fortaleza de caráter nos descrevem esse irmão maior. E os episódios mais eloqüentes de sua vida são precisamente episódios de vigor, valor, energia. Basta relembrar aquele que para os jovens soa como o episodio fundamental, por ser o mais dramático: o episodio da bandeira agredida nos famosos acontecimentos de Roma: episodio de um valor simbólico claríssimo, quando, dobrado e despedaçado o mastro, eleva-se e agita-se inflexível a bandeira do ideal.
E penetramos assim a profundidade dessa fortaleza, bem diferente da insolente explosão de violência e arrogância pelas quais tantos foram temidos na época, porque a fortaleza radicada na alma, coerente com o pensamento, derivada da razão, militante por coisas boas e certas, expressa-se em formas e sentimentos nobres e generosos. Não fácil exuberância de paixões desordenadas.

Quem colheu a impressão dada por ele nos momentos mais calmos e de recolhimento da vida, aqueles dos exercícios espirituais, quando a alma se expõe com perfeita sinceridade e revela voluntariamente os segredos interiores, nos confirma: “ Para mim – escreveu padre Righini – ele se tornou mais que tudo o exemplo de uma fortíssima e férrea vontade de caráter ”.
Escutemo-lo : “ tudo se resume na fortaleza da alma!”
Pois bem, isso faz pensar.

Faz pensar em duas ordens de consideração. A primeira diz respeito à vitalidade superior desta existência: ela é verdadeiramente juventude. Ela tem para si o amanhã, o porvir. Ela é de fato, o que no mundo moderno é muitas vezes apenas desejo. Ela tem algo em si de mais belo e maior que qualquer outra manifestação de vida.
E a segunda nos leva a indagar o segredo dessa plenitude vital, dessa espiritual superioridade. O segredo está talvez escondido no carisma cristão, singularmente poderoso no fundo dessa alma jovem? Isso importa saber.

Ele, com todos franco e aberto, com poucos abriu-se em grandes confidencias sobre seu trabalho interior. Mas os testemunhos abundantes e a transparência do escondido comando revelam a intima inspiração do estilo visível: a sua fortaleza foi perfeição interior antes de ser explicação exterior. Fortaleza era auto domínio.

Autodomínio era castigar-se.

Era forte, porque austero.

Austero e doce, ou amigo; austero e vivo. Devido à comunicação com Deus consolador, suave hóspede da alma, frescor interior, atingia vivificante alimento. Entre a tua obra externa, a tua interna retidão moral e a tua assiduidade ao altar de Deus existe relação certíssima. Um dia talvez a Igreja nos dirá que realmente tudo te veio da força de Deus.

Deus.

Segredo da tua juventude.

Ausência de Deus: presumida superioridade do mundo moderno.

Deus: fonte e fundamento das virtudes básicas sobre as quais se rege a vida moral, social, intelectual. Das virtudes “primitivas” que são a juventude do mundo e os recursos da civilização. Daquelas virtudes primitivas que tornam linear, límpida, fraterna e robusta a figura de Pier Giorgio.

Deus, segredo dessa admirável juventude, nO qual acreditou e amou como pai, como fonte da vida, como inefável dom que dilata a alma até os confins do infinito, que a inebria de maravilha e alegria, a torna muda na adoração e lírica de canto e de gaudio, a queima de casta pureza e inunda de incomparável amor.
Rico dessa força Pier Giorgio é moderno e jovem.
É por isso que toda a sua vida é dominada de uma firme consciência de renovação, ação e militância.
É por isso que um capitulo de sua vida se intitula: A alegria de viver. O cristianismo é uma exaltação à verdadeira vida.

É por isso que do coração e das mãos de Pier Giorgio irradia continua caridade. A caridade ao próximo é a manifestação de vida que melhor espelha aquela de Deus: a sua paternidade universal, a sua magnificência, a sua bondade, a sua essência. É a melhor comprovação que atesta a coincidência da religião com a vida. É um ato de fé prática que afirma estar Cristo no irmão necessitado.

Esta foi a suprema declaração cristã de Pier Giorgio: o ultimo esforço.

O que nos fala, então, o exemplo deste irmão?
Nos diz que o cristianismo é a força da verdadeira juventude.

Nos diz que o cristianismo é forte, não mais na grandeza que fascina o mundo; mas é forte e vivo na humildade de suas virtudes interiores e severas: é forte quando vivenciado com sacrifício. É forte quando está doente da enfermidade resultante da cruz. Nos diz como podemos olhar sem susto e sem hostilidade a fulgurante potencia do nosso século, não falando mal das coisas, mas auto dominando-nos.

Nos diz enfim quanta beleza, quanta força, quanta juventude, germina nas humildes fileiras das nossas associações, quando aqueles às quais pertencem vos infundem o que procurais, dão aos companheiros o que deles requisitam, desenvolvem o programa para o qual são direcionados, vivenciam a idéia que vos é anunciada.
Nos diz que se nós, como Pier Giorgio, temos o lema mihi vivere Christus est, temos, como ele, diante de nós, o caminho do amanhã e o caminho da eternidade

* Discurso comemorativo pronunciado em 3 de julho de 1932, em Turim, na Igreja da Crocetta. “Revista dos jovens”, setembro, 1932.

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